sábado, 15 de dezembro de 2007

LEDA E O CISNE

LEDA E O CISNE


Yeats


Súbito golpe: as grandes asas a bater

Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada

Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;

O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.



Dedos incertos de terror, como empurrar

Das coxas bambas o emplumado resplendor?

Pode o corpo, sob esse impulso de brancor,

O coração estranho não sentir pulsar?



Um tremor nos quadris engendra incontinenti

A muralha destruída, o teto, a torre a arder

E Agamêmnon, o morto.


Capturada assim,

E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim

Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,

Antes que a abandonasse o bico indiferente?



(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ



Fernando Pessoa




I

Quando, despertos deste sono, a vida,

Soubermos o que somos, e o que foi

Essa queda até Corpo, essa descida

Até à noite que nos a Alma obstrui,




Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudo que há ou flui?

Não: nem na Alma livre é conhecida...

Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.




Deus é o Homem de outro Deus maior:

Adam Supremo, também teve Queda;

Também, como foi nosso Criador,



Foi criado, e a Verdade lhe morreu...

De além o Abismo, Spirito Seu, Lha veda;

Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.





II



Mas antes era o Verbo, aqui perdido

Quando a Infinita Luz, já apagada,

Do Caos, chão do Ser, foi levantada

Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.


Mas se a Alma sente a sua forma errada,

Em si, que é Sombra, vê enfim luzido

O Verbo deste mundo, humano e ungido,

Rosa Perfeita, em Deus crucificada.




Então, senhores do limiar dos Céus,

Podemos ir buscar além de Deus

O Segredo do Mestre e o Bem profundo;




Mas só de aqui, mas já de nós, despertos,

No sangue atual de Cristo enfim, libertos

Do a Deus que morre a geração do Mundo.




III



Ah, mas aqui, onde irreais erramos,

Dormimos o que somos, e a verdade,

Inda que enfim em sonhos a vejamos,

Vêmo-la, porque em sonho, em falsidade.


Sombras buscando corpos, se os achamos

Como sentir a sua realidade?

Com mãos de sombra. Sombras, que tocamos?

Nosso toque é ausência e vacuidade.




Quem desta Alma fechada nos liberta?

Sem ver, ouvimos para além da sala

De ser: mas como, aqui, a porta aberta?




Calmo na falsa morte a nós exposto,

O Livro ocluso contra o peito posto,

Nosso Pai Rosaeacruz conhece e cala.

VIGÍLIA

VEGLIA



Giuseppe Ungaretti: uma tradução


Un’intera nottata

buttato vicino

a un compagno

massacrato

con la sua bocca

digrignata

volta al plenilúnio

con la congestione

delle sue mani

penetrata

nel mio silenzio

ho scritto

lettere piene d’amore



Non sono mai stato


tanto

attaccato alla vita




VIGÍLIA


Uma noite inteira

próximo

de um companheiro

massacrado

com a sua boca

a ranger à lua cheia

com o sangue hirto

das suas mãos

cravado

em meu silêncio

escrevi

cartas cheias de amor



Nunca estive assim


tão

encostado à vida



(Tradução de J.T.Parreira)

Poema dos Dons

Poema dos Dons



Jorge Luis Borges



Graças quero dar ao divino

labirinto de efeitos e causas


pela diversidade das criaturas


que formam este singular universo,


pela razão, que não deixará de sonhar


com um plano para o labirinto,


pela face de Helena e a perseverança de Ulisses,


pelo amor, que nos deixa ver os outros


como os vê a divindade,


pelo firme diamante e água solta,


pela álgebra, palácio de precisos cristais,


pelas místicas moedas de Ângelo Silésio,


por Schopenhauer,


que talvez decifrou o universo,pelo fulgor do fogo,


que nenhum ser humano pode olhar sem assombro antigo,


pelo mogno, o cedro, o sândalo,


pelo pão e o sal,


pelo mistério da rosa


que prodigaliza cor e não a vê,


por certas vésperas e dias de 1955,


pelos duros tropeiros que na planície fustigam os animais e a alva,


pela manhã em Montevidéu,


pela arte da amizade,


pelo último dia de Sócrates,


pelas palavras que no crepúsculo disseram


de uma cruz a outra cruz,


por aquele sonho do Islã que abarcou


mil e uma noites,


por aquele outro sonho do inferno,


da torre do fogo que purifica


e das esferas gloriosas,


por Swedenborg,


que conversava com os anjos nas ruas de Londres.


pelos rios secretos e imemoriais


que convergem em mim,


pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,


pela espada e a harpa dos saxônios,


pelo mar, que é um deserto resplandecente


e uma cifra de coisas que não sabemos


e um epitáfio dos vikings,


pela música verbal da Inglaterra,


pela música verbal da Alemanha, pelo ouro que reluz nos versos,


pelo inverno épico,


pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,


por Verlaine, inocente como os pássaros,


pelos prismas de cristal e o peso de bronze,


pelas raias do tigre,


pelas altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,


pela manhã no Texas,


por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral


e cujo nome, como ele houvera preferido, ignoramos,


por Sêneca e Lucano de Córdoba,


que antes do espanhol escreveram


toda a literatura espanhola,


pelo geométrico e bizarro xadrez,


pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,


pelo odor medicinal do eucalipto,


pela linguagem, que pode simular a sabedoria,


pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,


pelo hábito,


que nos repete e nos confirma como um espelho,


pela manhã, que nos proporciona a ilusão de um começo,


pela noite, sua treva e sua astronomia,


pelo valor e a felicidade dos outros,


pela pátria, sentida nos jasmins


ou numa velha espada,


por Whitmann e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,


pelo fato de que o poema é inesgotável


e se confunde com a soma das criaturas

e jamais chegará ao último verso


e varia segundo os homens,


por Francisco Haslam, que pediu perdão aos filhos


por morrer tão devagar,


pelos minutos que precedem o sono,


pelo sono e pela morte,


esses dois tesouros ocultos,


pelos íntimos dons que não enumero,


pela música, misteriosa forma do tempo.


(tradução de Paulo Mendes Campos)

Nalgum lugar em que nunca estive

Nalgum lugar em que nunca estive



E.E.Cummings


nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto


teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa


ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;


nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira


(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas


( tradução: Augusto de Campos )

A SIERGUÉI IESSIÊNIN

A SIERGUÉI IESSIÊNIN


Vladimir Maiakóvski



Você partiu,
como se diz,
para o outro mundo.
Vácuo. . .
Você sobe,
entremeado às estrelas.
Nem álcool,
nem moedas.
Sóbrio.
Vôo sem fundo.
Não, lessiênin,
não posso
fazer troça, -
Na boca
uma lasca amarga
não a mofa.
Olho –
sangue nas mãos frouxas,
você sacode
o invólucro
dos ossos.
Sim,
se você tivesse
um patrono no "Posto"(1) –

ganharia
um conteúdo
bem diverso:
todo dia
uma quota
de cem versos,
longos
e lerdos,
como Dorônin(2).
Remédio?
Para mim,
despautério:
mais cedo ainda
você estaria nessa corda.
Melhor
morrer de vodca
que de tédio !
Não revelam
as razões
desse impulso
nem o nó,
nem a navalha aberta.
Pare,
basta !
Você perdeu o senso? –
Deixar
que a cal
mortal
Ihe cubra o rosto?
Você,
com todo esse talento
para o impossível;
hábil
como poucos.
Por quê?
Para quê?
Perplexidade.
- É o vinho!
- a crítica esbraveja.
Tese:
refratário à sociedade.
Corolário:
muito vinho e cerveja.

Sim,
se você trocasse
a boêmia
pela classe;
A classe agiria em você,
e Ihe daria um norte.
E a classe
por acaso
mata a sede com xarope?
Ela sabe beber –
nada tem de abstêmia.
Talvez,
se houvesse tinta
no "Inglaterra"(3);
você
não cortaria
os pulsos.
Os plagiários felizes
pedem: bis!
Já todo
um pelotão
em auto-execução.
Para que
aumentar
o rol de suicidas?
Antes
aumentar
a produção de tinta!
Agora
para sempre
tua boca
está cerrada.
Difícil
e inútil
excogitar enigmas.
O povo,
o inventa-línguas,
perdeu
o canoro
contramestre de noitadas.
E levam
versos velhos
ao velório,
sucata
de extintas exéquias.
Rimas gastas
empalam
os despojos, -
é assim
que se honra
um poeta?
-Não
te ergueram ainda um monumento –
onde
o som do bronze
ou o grave granito? –
E já vão
empilhando
no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
excremento.
Teu nome
escorrido no muco,
teus versos,
Sóbinov(4) os babuja,
voz quérula
sob bétulas murchas –
"Nem palavra, amigo,
nem so-o-luço".
Ah,
que eu saberia dar um fim
a esse
Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
- escândalo estridente:
- Chega
de tremores de voz!
Assobios
nos ouvidos
dessa gente,
ao diabo
com suas mães e avós!
Para que toda
essa corja explodisse
inflando
os escuros
redingotes,
e Kógan(6)
atropelado
fugisse,
espetando
os transeuntes
nos bigodes.
Por enquanto
há escória
de sobra.
0 tempo é escasso –
mãos à obra.
Primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la –
em seguida.
Os tempos estão duros
para o artista:
Mas,
dizei-me,
anêmicos e anões,
os grandes,
onde,
em que ocasião,
escolheram
uma estrada
batida?
General
da força humana
- Verbo –
marche!
Que o tempo
cuspa balas
para trás,
e o vento
no passado
só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício.


(Tradução de Haroldo de Campos)

1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.


2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).


3. Hotel em que Iessiênin se suicidou.


4. O famoso cantor L.V. Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantesda homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.


5. O papel de Loengrim, da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira artística de Leonid Sóbinov.


6. O crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.


publicado no livro: "Maiakóvski - Poemas"traduzido por Boris Schnaiderman,

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

DA POESIA MODERNA




O poema da mente no ato de encontrar

O que há de bastar. Não teve sempre

De encontrar: a cena estava armada; repetia o que

Estava no roteiro.




Então o teatro foi mudado

Para uma outra coisa. Seu passado um suvenir.

Tem de estar vivo, aprender a fala do lugar.

Tem de encarar os homens do tempo e encontrar

As mulheres do tempo. Tem de pensar na guerra

E tem de achar o que bastará. Tem de

Construir um novo palco. Tem de estar nesse palco

E, como um ator insaciável, lentamente e

Com meditação, dizer as palavras que no ouvido,

No delicadíssimo ouvido da mente, repitam,

Exatamente, aquilo que se quer ouvir, ao som

Do qual uma audiência invisível escuta,

Não a peça, mas a si mesma, expressa

Numa emoção como de duas pessoas, como de duas

Emoções tornando-se uma. O ator é

Um metafísico no escuro, tangendo

Um instrumento, tangendo uma corda tensa que dá

Sons que assumem repentina correção, de todo

Contendo a mente, abaixo da qual não poderá descer,

Além da qual não tem vontade de subir.





Tem de

Ser o encontrar de uma satisfação, e pode ser

Um homem patinando ou uma mulher dançando, uma mulher

Penteando-se. O poema do ato da mente.
.

O Rio

O RIO





Manuel Bandeira


Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite.

Não temer as trevas da noite.

Se há estrelas no céu, refleti-las

E se os céus se pejam de nuvens,

Como o rio as nuvens são água,

Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranqüilas.



Sobre o pobre B.B.

Sobre o pobre B.B.



Bertolt Brecht



Eu, Bertolt Brecht, sou das florestas negras.
Minha mãe me trouxe para as cidades
Dentro do ventre. E o frio das florestas
Estará comigo ao me cobrir a laje.


Na cidade de asfalto estou em casa e a caráter,
Com todos os últimos sacramentos
Ministrados: jornais, tabaco, conhaque:
Desconfiado, indolente e enfim satisfeito.


Sou amável com os outros. E visto
Meu chapéu-coco, como todo o mundo.
Digo: são bichos de cheiro esquisito
E digo: e daí? Também sou, no fundo.


Às vezes, nas cadeiras de balanço,
Coloco algumas moças, de manhã,
E digo: em mim vocês têm, eu garanto,
Alguém em quem não podem confiar.


À tarde me reúno com colegas.
Tratamo-nos de “gentleman”, então.
Eles dizem, com os pés à minha mesa:
As coisas vão melhorar. E não pergunto: quando.


Na madrugada cinza, abetos mijam
E piam os pássaros, que são seus vermes.
Na cidade, meu copo se esvazia,
Largo o charuto e durmo um sono leve.


Assentamo-nos, uma geração leviana,
Em prédios que quiséramos indestrutíveis
(assim construímos os arranha-céus da ilha de Manhattan
E as finas antenas sobre o Atlântico a nos divertirem).


Destas cidades ficará quem as atravessou, o vento!
A casa faz feliz quem nela come: quem a esvazia.
Sabemos sermos efêmeros
E que depois de nós o que virá será sem valia.


Nos terremotos vindouros, que não seja meu fado
Deixar por amargura o meu Virginia se apagar,
Eu, Bertolt Brecht, largado nas cidades de asfalto,
Oriundo das florestas negras, no ventre da mãe, tempos atrás.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Dispersão

Dispersão




Mário de Sá-Carneiro


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.


Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...


Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.


(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:


Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família.)


O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.


A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.


Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.


Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projecto.


Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.


Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.


Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo


A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.


(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)


E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.


Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.


Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...


Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...


Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...


Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.


Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.


Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...


... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ...
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ...

sábado, 1 de dezembro de 2007

SALA DAS MULHERES DE PARTO

Para Iago que acaba de encerrar seu estágio em Ginecologia e Obstetrícia


SALA DAS MULHERES DE PARTO




Gottfried Benn



Mulheres mais pobres de Berlim
-em quarto e meio treze filhos,
reclusas, putas, marginais-
gemem aqui, ventre a torcer-se.
Em parte alguma se uiva assim.
Em parte alguma à dor, desdita,
mais indiferença pode ver-se,
aqui há sempre algo que grita.


'Mulher, avie-se! Tá a perceber?
Não está aqui para o prazer.
Nem deixe as coisas arrastar-se
se nesse parto vai borrar-se!
Não está aqui para o descanso.
Não vem por si. Dê-lhe um avanço!'
Ei-lo: pequeno e arroxeado.
De fezes e mijo vem untado.


De onze camas, sangue e choro,
sai gemedeira em saudação.
Só de dois olhos rompe um coro
de aleluias que ao céu vão.


Tudo esta peça de carne há-de
conhecer: dor, felicidade.
E se o estertor um dia exala
inda há mais doze nesta sala.


(trad.Vasco Graça Moura)

http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag15benn.htm

Homem e mulher visitam o pavilhão dos cancerosos

Homem e mulher visitam o pavilhão dos cancerosos



Gottfried Benn


Homem:

aqui, estas fileiras são dos ventres cancerosos

e esta fileira dos seios cancerosos.

Leito por leito fétido. As enfermeiras se revezam de hora em hora.

Venha, pode levantar esta coberta.

Olhe, este amontoado de gordura e secreção pútrida,

já foi antes tudo para um homem

e significava também sussurro e pátria.

Venha, olhe para esta cicatriz no peito.

Está sentindo o relevo macio e branco?

Pode tocá-lo, a carne é macia e não dói.

Aqui, esta sangra como trinta corpos.

Ninguém tem tanto sangue assim.

Aqui, desta tiveram que tirar primeiro

uma criança de dentro do ventre carcinomatoso.

Deixam-nas dormirem. Dia e noite. -Às novas

se diz: aqui se dorme até ficar sã. -Só aos domingos

deixam-nas um pouco conscientes, para a visita.

Alimento é pouco ingerido. As costas

estão em chagas. Você vê as moscas. De vez em quando

a enfermeira as banha, como se tivesse lavando bancos.

Aqui, por cada leito o túmulo incha

Carne nivela-se com a terra. A energia se esvai.

Sangue escorre incessante. A cova chama.


domingo, 18 de novembro de 2007

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA


Dylan Thomas

Tradução: Ivan Junqueira


Em meu ofício ou arte taciturna

Exercido na noite silenciosa

Quando somente a lua se enfurece

E os amantes jazem no leito

Com todas as suas mágoas nos braços,

Trabalho junto à luz que canta

Não por glória ou por pão

Nem por pompa ou tráfico de encantos

Nos palcos de marfim

Mas pelo mínimo salário

De seu mais secreto coração



Escrevo estas páginas de espuma

Não para o homem orgulhoso

Que se afasta da lua enfurecida

Nem para os mortos de alta estirpe

Com seus salmos e rouxinóis,

Mas para os amantes, seus braços

Que enlaçam as dores dos séculos,

Que não me pagam nem me elogiam

E ignoram meu ofício ou minha arte.


Link: "http://en.wikipedia.org/wiki/Dylan_Thomas">

domingo, 4 de novembro de 2007

Elegia


Luís Antônio Cajazeiras Ramos


A fúria das chamas atacou primeiro as partes baixas
da cidade, subiu as colinas, depois devastou...

Tácito



Minha cidade não tem estátua da liberdade.
Que concreto armado juntaria tantos fragmentos
num só corpo de mulher justíssima desvendada?
Talvez de barro seja feito um totem mulato,
e um sopro de mar faça-o sempre menino,
riso moleque rasgado num resto de calção,
caído na vida, iluminando a encruzilhada.


Meu Salvador não é o Cristo Redentor: é o Elevador
— que leva para o alto, mas leva também pra baixo,
misturando inferno e paraíso de todos os lados postais.


Não há sete maravilhas, mas há Sete Portas abertas,
dando em imensa feira — capital de sete pecados.


Sobre o tabuleiro que lhe serve de andor e palco,
ergue-se deusa do Desterro e caboclo da Misericórdia.


Protegida por fortes, faróis, igrejas e ebós, é santa
a Baía de Tolos e Sonsos e quantas ilhas e mais adornos,
sereia prometida sobre o promontório recôncavo,
vestida como um V de colo decotado e enfeitado
de balangandãs e de um presépio de invasões.


Cidade armada para intermitente batalha de largo,
explosiva guerra civil de batuques carnavalescos
— e a cavalaria dos trios elétricos galopa suas ruas,
no corpo-a-corpo fraterno e fratricida de exus e zumbis.


O abraço de seus casarões exala o suor dos pelourinhos,
entorpecendo as casas-grandes transvestidas em senzalas,
onde o Barão de Preto Velho usa terno de linho e saia rendada.


Escorre pelas ladeiras cansadas seu dendê e dengo,
lambuzando de bênçãos as promessas dos joelhos morenos,
arrastados contra as escadarias de colinas consagradas.


Salvador de ouro, meu berço e sarcófago,
minha trincheira e horizonte, minha guerra e paz,
fidelidade única de minha inconstância tanta!


Quando o mar arrastar de vez seus destroços,
meus plácidos olhos velarão seu funeral,
mergulhando em busca de seu canto Janaína.

Véspera do dia dos mortos

Véspera do dia dos mortos


Luís Antônio Cajazeira Ramos


Eu não amei meu pai como devia.
Houve o dia de amá-lo e não o amei.
Ele morreu, e não nasci ainda.
Amanhã levantei sem seu amor.


Nenhum conselho amigo soa seu.
Uma vida padrasta me acompanha.
Meu caminho não quis olhar pra trás.
Tão longe de meu pai me abandonei.



Nem meu, nem de ninguém, nunca fui seu.
Não me quis dar a quem eu estranhava.
Só teu colo, mamãe, era aconchego.



Do pai, resta-me um calo de silêncios.
Ai, arranco do peito o corpo estranho.
Coração, cava o chão, busca meu pai.

Essa Mulher

Essa Mulher


Rui Espinheira Filho


A que nunca amei e me ama pensa em mim à noite
antes de dormir, e nos escombros do sono
vê o meu rosto suave, arrogante, de há muitos anos
e sente uma mão fria empunhar-lhe o coração.


É bela a que nunca amei e me ama, cada vez mais bela
com seus cabelos soltos ao sopro da memória,
com uma voz onde sonham luas que jamais iluminaram
um caminho que me levasse à que nunca amei e me ama.


É doce essa mulher que acorda e diz o meu nome
com unção. Seus olhos me fitam do longínquo
e doem em mim como dói nessa mulher que me ama
amar quem nunca a amou, disperso em seus enganos.


A que nunca amei e me ama acaricia a minha ausência
com pena de mim, que teria sido feliz, bem sabe,
se a tivesse amado; a ela, que me ama e nunca amei
e nunca hei de amar, como até hoje, amargamente

Bicarbonato de Soda (Álvaro de Campos)


Bicarbonato de Soda (Álvaro de Campos)



Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus prpósitos todos!



Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?



Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...



Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,



Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!

domingo, 21 de outubro de 2007

À Espera dos Bárbaros

À Espera dos Bárbaros




Constantino Kaváfis



O que esperamos na ágora reunidos?


É que os bárbaros chegam hoje.


Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?


É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.


Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?



É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.



Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?



É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.


Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?


É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?


Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.


Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Viajando para Bizâncio

Viajando para Bizâncio



Yeats



Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.



Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final,
a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hábito mortal;
nem há escola de canto, ali, que não estude
monumentos de sua própria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância, em busca da cidade santa de Bizâncio.



Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser .
Rompei meu coração, que a febre faz doente
e, acorrentado a um mísero animal morrente,
já não sabe o que é; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.



Livre da natureza não hei de assumir
conformação de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas,
pousado em ramo de ouro, como um pássa-
ro, o que passou e passará e sempre passa.

Os Dois Lados

Os Dois Lados


Murilo Mendes


Deste lado tem meu corpo
Tem o sonho
Tem a minha namorada na janela
Tem as ruas gritando de luzes e movimentos
Tem meu amor tão lento
Tem o meu anjo da guarda
Que às vezes se esquece de me guardar
Tem o mundo batendo na minha memória
Tem o caminho para o trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo a minha vida
Tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
Tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão
Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem

domingo, 7 de outubro de 2007

Poema de sete faces - Carlos Drummond de Andrade

Poema de sete faces



Carlos Drummond de Andrade




Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.


O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,


Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Apogeu dos vagões - Florisvaldo Mattos

Apogeu dos vagões




Florisvaldo Mattos



Noturnos vagões carregados de amargura

de empilhados produtos e origens,

correi sobre horizontes dos dias!




Composição de espanto corrosivo

acerca-se de mim, vai penetrando

com violência em meus olhos. Vence-me

a carne e os nervos, minha voz,

meu desesperado sangue e cansaço, como

fantasma criminoso que, alta noite,

entrasse em minha casa fortemente

nutrido de perigos e desastres.




Negros, armados de geometria difícil,

rota economia de outonos ressentidos,

duram interiores funerários

sobre sacos sombrios e carregadores.

Barris de angústia, lento soluço,

arrastado gemido sobre trilhos,

correi, sempre correi, sombra

afogada na sombra de sangrento galope.




Confuso grito e fúria registrando

velocidade e pressentimentos,

avançai contra noites, contra os dias

noturnos vagões, consistência

de amarguras espessas e ferragens,

cruel fome de rodas gira-mundo.





Formado em direito, Florisvaldo Mattos optou pelo jornalismo, atividade que exerce até o presente. Nos anos 60, integrou em Salvador o grupo da chamada Geração Mapa, liderado pelo cineasta Glauber Rocha. Leia mais.

Quem morre? - Pablo Neruda


Quem morre?





Pablo Neruda




Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,

repetindo todos os dias o mesmo trajeto,

quem não muda de marca,

não arrisca vestir uma cor nova

e não fala com quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão seu guru.

Morre lentamente quem evita a paixão,

quem prefere o negro sobre o branco

e os pingos sobre os “is” a um redemoinho de emoções,

justamente as que resgatam os brilhos dos olhos, sorrisos dos

bocejos, corações a tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no

trabalho,

quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,

quem não se permite pelo menos uma vez na vida,

fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música,

quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor próprio, quem não se deseja

ajudar.

Morre lentamente, quem passa os dias

queixando-se do azar ou da chuva incessante.

Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de inicia-lo,

não perguntando de um assunto que desconhece

ou não respondendo quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em suaves cotas, recordando sempre que estar vivo

exige um esforço muito maior do que o simples feito de respirar.

Somente a ardente paciência fará

com que conquistemos uma plena felicidade.

História antiga - Raul de Leôni


História antiga




Raul de Leôni




No meu grande otimismo de inocente,

Eu nunca soube por que foi... um dia,

Ela me olhou indiferentemente,

Perguntei-lhe por que era... Não sabia...



Desde então, transformou-se de repente

A nossa intimidade correntia

Em saudações de simples cortesia

E a vida foi andando para frente...



Nunca mais nos falamos... vai distante...

Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante

Em que seu mudo olhar no meu repousa,



E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,

Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,

Mas que é tarde demais para dizê-la...



Raul de Leôni Ramos nasceu em Petrópolis-RJ, e faleceu na "Vila Serena", em Itaipava-RJ, (30 de outubro de 1895 - 21 de novembro de 1926). Bacharel em Direito, prosador, diplomata e político. Chegou a eleger-se deputado estadual.Foi o poeta de maior realce na última fase do simbolismo, e justamente considerado como uma das figuras mais notáveis do soneto brasileiro de todos os tempos.Leia mais.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Desejo - Victor Hugo


Desejo



Victor Hugo


"Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.

Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar".

Victor Hugo (26 de fevereiro de 1802 em Besançon - 22 de maio de 1885, Paris) foi um escritor e poeta francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras. Leia mais.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Postada por Michelle irmã de Milena (ambas, doce de ambrosia do bom como das minhas tias de Caetité, filhas de Ana e Alfredo - FELICIDADES


Escravo em Papelópolis

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


"Ó burocratas!
Que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio...
É ainda o sentimento
Da vida que perdi sendo um dos vossos."




Busque Amor novas artes, novo engenho

CAMÕES


Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.



LINKS:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Ao Divino Assassino - Bruno Tolentino

"Ao Divino Assassino"




(Uma Litania ante o Sagrado
Coração, concebida em Paray-le-Maunial,
à época do acidente fatal
de Anecy Rocha)


Bruno Tolentino


Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível
é sempre assim? Não tens um refratário
à hora do massacre — um mais sensível


que atrasasse o relógio, o calendário?
Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino dói no campanário.


Começa a amanhecer e uma vez mais
rebelo-me, mas sei que a minha vida
não tem como ou porque voltar atrás.


Aceito que a mais dura despedida
é bem mais que metáfora do nada
a que se inclina no chão; que uma ferida


e a papoula sangrenta da alvorada
pertencem ao mundo sobrenatural
tanto quanto uma lágrima enxugada


à beira de um caixão. Mas afinal,
Senhor, amas ou não a humanidade?
Não fui ao escandaloso funeral


e imaginá-la em Tua eternidade
dói demais! Vou passar mais este teste,
sim, mas protesto contra a insanidade


com que arrancas a muque o que nos deste!
Tu sabes que a soberba da família
era maior que a dela e eu tinha a peste —


pai e mãe apartavam-me da filha
e o irmãozão nem... E hoje, coitados,
como hão de estar? Aqui é a maravilha,


as genuflexões.... Os potentados
e os humildes, a nata da esperança,
todos chegam por cá meio esfolados,


sangrando como a luz. Não só da França,
toda a Europa rasteja até aqui
esfolando os joelhos, não se cansa


de ensangüentar-se até chegar a Ti,
e ao menos a um pixote do Além Tejo
restituíste a vista: eu quando o vi


solucei — mas que o cego e o paraplégico
saiam aos pinotes, que o Teu coração
se escancare e esparrame um privilégio


aqui e outro acolá na multidão,
só me faz perguntar: E ela? E ela...?
Não consigo entender que a um aleijão


concedas tanto enquanto a uma camélia
Tu deixas despencar.... Porque, Senhor?
Olho tudo do vão de uma janela,


mas vejo a porta de um elevador
escancarar-se sobre um outro vão,
um vão sem chão... E a seja lá quem for


aqui absurdamente dás a mão!
Me pões trêmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor — mas consolado não.


A mesma mão que fez gato e sapato
da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,


Dominus dixit... Mas quem merecia
mais do que uma açucena matinal
um manso desfolhar-se ao fim do dia,


quem mais do que uma flor, Senhor? Igual
nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos,
tinha direito a um fim mais natural,


à morte numa cama, em casa ao menos...
Mas não — tinha que ser total o escândalo!
Por que, se nem nos circos mais extremos


Teus mártires andaram despencando
sobre os leões, se nem o lixo cai
de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!


Não vim denunciar o Filho ao Pai
ou o Pai ao Filho, não vim dar razão
aos que recusam e usam cada ai


contra a humildade; vim porque a Paixão
me chamou pelo nome a a alma obedece
e aceita suar sangue — como não?


Mas não sei mais unir o rogo à prece
do que a elegia ao hino de louvor,
não seu amar-Te assim... Caso soubesse


teria que ficar aqui, Senhor,
aqui, arrebentando-me os joelhos,
esfolando-me todo ante um amor


que vai tornando sempre mais vermelhos,
mais duros os degraus do Teu altar.
Tu, que tudo consertas, dos artelhos


que desentortas e repões a andar
até às pupilas mortas de um garoto,
do cachoupinho que me fez chorar;


Tu, que a este lhe dás a flor no broto
e àquele o lírio pútrido do pus;
Tu, que passas por um de quatro e a um outro


pegas no colo e entregas a Jesus;
Tu que fazes jorrar da rocha fria;
Tu que metaforizas Tua luz


ao ponto de fazer de uma agonia
um puro horror ou a morna mansuetude —
que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?


Quando eu agonizar, boiar no açude
das lágrimas sem fundo... Quando a fonte
cessar de soluçar e uma altitude


imerecida me enxugar a fronte...
Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras
que a mim me embale a barca de Caronte,


como o fazia a velha Cantareira,
o azul da travessia... A Irrecorrível
arrasta a cada um de uma maneira


e a quem quer que se abeire ao invisível
recordas a promessa: aquele a escuta
e este a recusa porque a dor é horrível,


mas, se a todos a última permuta
terá sempre o sabor da anulação,
o travo lacrimoso da cicuta,


a ela Tu negaste o próprio chão,
deixaste-a abrir a porta sem querer!
Nunca falou na morte, e com razão,


intuía, quem sabe, o que ia ver...
Sentença Tua? Em nome da promessa
não há negar Teu duro amanhecer —


mas quando arrancas mais uma cabeça
como saber que és Tu, que não mentia
O que ressuscitou? Talvez na pressa,


no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,


metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão


de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta... Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,


se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Ariel por Calibã...?
Alvorece, a manhã beata velha


enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso, ela morreu... Hoje, amanhã,


enquanto Te aprouver e até que dê
a palma ao prego e o último verso à traça,
vai doer — mas Amém! Não há porque


amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não... Tudo dói, menos a graça,


mata, Senhor, que a morte não faz mal!


Do livro: Anulação e Outros Reparos, 1963



De Bruno:


Por que escrevo
(excerto)



Digamos que escrevo para tentar separar
o mundo-como-tal do mundo-como-idéia.
Claro? Bem, talvez tenha outras motivações
menos conscientes, mas não tenho melhor
justificativa para exercer um ofício tão
perigoso... Imaginar-se autor parece-me
tamanha petulância que desde que me
entendo tento fingir que sirvo para alguma
coisa!

....................................................................................


Isto posto, que se atente bem: poeta não é
maître à penser e jamais pretendi que
escavo e escrevo para tentar configurar
mais uma teoria, antes o faço de modo a
testemunhar de uma resistência a tentações
desse tipo, de que tampouco fui poupado.
Mas não complico mais a coisa: confesso
ao leitor que não sei porque inventei de
ser escritor. A não ser que o que ficou
dito acima faça algum sentido...

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Estudo para um Caos - Murilo Mendes

Estudo para um Caos


Murilo Mendes



O último anjo derramou seu cálice no ar.

Os sonhos caem na cabeça do homem,

As crianças são expelidas do ventre materno,

As estrelas se despregam do firmamento.

Uma tocha enorme pega fogo no fogo,

A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.

Os vulcões vomitam cometas em furor

E as mil pernas da Grande dançarina

Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.

Rachou-se o teto do mar em quatro partes:

Instintivamente eu me agarro no abismo.

Procurei meu rosto, não o achei.

Depois a treva foi ajuntada à própria treva.

sábado, 14 de julho de 2007

E se eu disser - Ivan Junqueira

E se eu disser



Ivan Junqueira



E se eu disser que te amo - assim, de cara,

sem mais delonga ou tímidos rodeios,

sem nem saber se a confissão te enfara

ou se te apraz o emprego de tais meios?


E se eu disser que sonho com teus seios,

teu ventre, tuas coxas, tua clara

maneira de sorrir, os lábios cheios

da luz que escorre de uma estrela rara?


E se eu disser que à noite não consigo

sequer adormecer porque me agarro

à imagem que de ti em vão persigo?


Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro

em tua ausência - essa lâmina exata

que me penetra e fere e sangra e mata.

A Reconstrução - Mário Faustino

A Reconstrução

Mário Faustino


(...)

E nos irados olhos das bacantes

Finalmente descubro quem procuro.

Não eras tu, Poesia, meras armas,

Pura consolação de minha luta.

Nem eras tu, Amor, meu camarada,

Às costas me levando, após a luta.

Procurava-me a mim, e ora me encontro

Em meu reflexo, nos olhares duros

De ébrios que me fuzilam contra o muro

E o perdão de meu canto. Sobre as nuvens

Defronte mãos escrevem numa estranha,

Antiquíssima língua estas palavras

Que afinal compreendo: toda vida

É perfeita. E pungente, e raro, e breve

É o tempo que me dão para viver-me,

Achado e precioso. Mas saúdo

Em mim a minha paz final. Metade

Infame de homem beija os pés da outra

Diva metade, enquanto esta se curva

E retribui, humilde, a reverência.

A serpente tritura a própria cauda,

O círculo de fogo se devora,

Arrasta-se o cadáver bem ferido

Para fora do palco:

este cevado

Bezerro justifica minha vida

Cantiga de Malazarte - Murillo Mendes

Cantiga de Malazarte


Murillo Mendes


Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo.

ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.

Não desprezo nada que tenha visto,

todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.

Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,

destelho as casa penduradas na terra,

tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.

Desloco as consciências.

a rua estala com meus passos,

e ando nos quatro cantos da vida.

Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido.

não posso amar ninguém porque sou o amor,

tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos

e a pedir desculpas ao mendigo.

Sou o espírito que assiste à Criação

e que bole todas as almas que encontra.

Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,

nada me fixa nos caminhos do mundo.

sábado, 7 de julho de 2007

Magnificat

Magnificat
Fernando Pessoa


Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?

Quando é que despertarei de estar acordado?

Não sei. O sol brilha alto,

Impossível de fitar.

As estrelas pestanejam frio,

Impossíveis de contar.

O coração pulsa alheio,

Impossível de escutar.

Quando é que passará este drama sem teatro,

Ou este teatro sem drama,

E recolherei a casa?

Onde? Como? Quando?

Gato que me fitas com olhos de vida, Quem tens lá no fundo?

É Esse! É esse!

Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;

E então será dia.

Sorri, dormindo, minha alma!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Para Iago - Felicidades!!!!!!!

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.



Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!



O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!



Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .


Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...






Alberto da Costa e Silva



Poema de Aniversário




De que céu, se o céu em que desfaço
as mãos em flores, que trazia, parte
hei de esperar que pare este mudar-se
de outras claras manhãs nesta tristeza?


Alto sonhamos com imóveis águas,
setembros permanentes, garças fixas,
mas os olhos e as mãos nada conquistam,
e enegrece na mesa a maçã limpa.


Carda o rude luar a lã noturna.
A vida é só, e o pranto, pequenino.
Que fazer deste rastro sem sentido
que vem ao homem e parte do menino?


domingo, 24 de junho de 2007

Kátia Drummond - Mater Dei

MATER DEI





Você brotou. Em mim, nasceram luzes.

O breu do universo se desfez.

Eu, radiosa, iluminava tudo.

Como as estrelas no meio da noite.

E como o sol encandescendo o mundo.

Amei você pela primeira vez.

Seu coração ruidoso, no meu corpo,

pulsava em mim. Eu era a Mater Dei.

E ao te sentir o corpo, buliçoso,

fazer folia junto ao corpo meu,

lacrimejei meu riso venturoso.

Pela segunda vez, então, te amei.

Enquanto a tua vida me expandia,

algum mistério novo acontecia.

Até que em mim, o amor feriu-se em dor.

Entre a tormenta que em mim doía,

eu, transbordando dor e alegria,

senti meu sangue quente a escorrer.

E do meu sangue, vi você nascer.



II


Virei Nossa Senhora, a mãe do mundo.

E fiz do Deus Menino o filho meu.

Segui teus gestos, a cada segundo.

Mãe-de-leite zelosa, fartas mamas,

ao ver meu sangue transmutado em leite,

e ao ter você, bezerro, no meu peito,

senti dos Budas todos os nirvanas.

Vivi a plenitude do deleite.

O de ser vida. Ser o alimento.

Senti uma transformação maior por dentro.

Vi que era mais que a Mãe. Eu era Deus.

E foi então que fiz um juramento:

jamais deixar sofrer os filhos meus.

Do meu sangue, fiz teu alimento.

Do meu corpo, fiz teu cobertor.

Teci para você um belo ninho.

E como faz a ave ao seu filhinho,

abri-te as asas, dei-te o meu calor.



III


Segui teu tempo de crescer e de voar.

Sempre ao teu lado, como um animal,

cumprindo o meu instinto, visceral,

acompanhei-te a cada caminhar.

Vi você, pastor, tocando flauta.

Você, anjinho, tocando bandolim.

Adormeci ao som da tua gaita.

E a vida quis te separar de mim.

Percorri mundo, qual uma cigana.

Você, em mim, a viajar comigo.

E a saudade, banzo de quem ama,

tatuava em meu corpo o meu castigo.

Cravejava em meu peito essa desdita.

A incomensurável dor que não reclama.

Que faz de toda mãe uma alma aflita,

a tatuar, no peito, o próprio filho.

A transformá-lo em seu mote perpétuo.

Como se o filho, esse andarilho incerto,

houvesse de seguir seu velho trilho.




IV


Acho que desertei. Saí de mim.

Cansei de padecer no desengano.

Só espero que minh’alma bucaneira,

a mesma alma que te fez gitano,

alcance te esperar a vida inteira.

Alcance te amar, vida após vida.

A cada dor. A cada despedida.

A cada ato do teatro humano.




Kátia Drummond

Salvador BA, primavera de 1998.

OBS: Ganhou o primeiro lugar no 1º Festival Internacional de Poesia, promovido pela revista “A Feiticeira”, na Internet/1999.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Rimbaud - Poemas

Poemas de Rimbaud


MA BOHÈME (Fantasie) ~


E lá me ia, as mãos nos bolsos furados,

E meu casaco era também o ideal.

Eu ia sob o céu, Musa! e te era leal;

Oh! lá! lá! que esplêndidos amores sonhados!




Minha única calça estava em frangalhos

— Pequeno Polegar sonhador, em minha fuga eu ia

Desfiando rimas e sob a Ursa Maior adormecia,

Ouvindo no céu o doce rumor das estrelas.




Sentado à beira das estradas eu as ouvia,

Belas noites de setembro em que eu sentia

O orvalho em meu rosto como um vinho forte;




Quando compondo em meio a sombras fantásticas,

Como uma lira eu puxava os elásticos

De meus sapatos gastos, um pé junto ao meu peito!





CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA



Mocidade presa

A tudo oprimida

Por delicadeza

Eu perdi a vida.

Ah! Que o tempo venha

Em que a alma se empenha.



Eu me disse: cessa,

Que ninguém te veja:

E sem a promessa

De algum bem que seja.

A ti só aspiro.

Augusto retiro.



Tamanha paciência

Não irei esquecer.

Temor e dolência,

Aos céus fiz erguer.

E esta sede estranha

A ofuscar-me a entranha.


Qual o Prado imenso

Condenado a olvido,

Que cresce florido

De joio e de incenso

Ao feroz zunzum das

Moscas imundas.



SOBRE O POEMA “SENSATION”


Este poema de grande sensibilidade não tinha título quando foi enviado a Théodore de Banville. A versão definitiva traz o título “Sensation”.



Pas les beaux soirs d’été, j’irai dans les sentiers
Picoté par les blés, fouler l’herbe menue:
Rêveur, j’en sentirai la fraîcheur à mes pieds:
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.


Je ne parlerai pas, je ne penserai rien…
Mais un amour immense entrera dans mon âme,
Et, j’irai loin, bien loin; comme un bohemian
Par la Nature, — heureux comme avec une femme!

(1870)


oooo0000oooo


Nas belas tardes de verão, pelas estradas irei,

Roçando os trigais, pisando a relva miúda:

Sonhador, a meus pés seu frescor sentirei:

E o vento banhando-me a cabeça desnuda.



Nada falarei, não pensarei em nada:

Mas um amor imenso me irá envolver,

E irei longe, bem longe, a alma despreocupada,

Pela Natureza — feliz como com uma mulher.



LINK: http://poetas.mortos.sites.uol.com.br/rimbaud.htm

Baudelaire


AS LITANIAS DE SATÃ


Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,

Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,

E que, vencido, sempre te ergues mais brutal,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas,

Charlatão familiar das humanas insânias,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que, mesmo ao leproso, ao paria infame, ao réu

Ensinas pelo amor às delícias do Céu,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que da morte, tua velha e forte amante,

Engendraste a Esperança, - a louca fascinante!

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que dás ao proscrito esse alto e calmo olhar

Que faz ao pé da forca o povo desvairar,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que sabes onde é que em terras invejosas

O Deus ciumento esconde as pedras preciosas.

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu cuja larga mão oculta os precipícios,

Ao sonâmbulo a errar na orla dos edifícios,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que, magicamente, abrandas como mel

Os velhos ossos do ébrio moído num tropel,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu, que ao homem que é fraco e sofre deste o alvitre

De poder misturar ao enxofre o salitre,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que pões tua marca, ó cúmplice sutil,

Sobre a fronte do Creso implacável e vil,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que, abrindo a alma e o olhar das raparigas



a ambos



Dás o culto da chaga e o amor pelos molambos,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Do exilado bordão, lanterna do inventor,

Confessor do enforcado e do conspirador,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria !


Pai adotivo que és dos que, furioso, o Mestre

O deus Padre, expulsou do paraíso terrestre

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria !





ORAÇÃO



Glória e louvor a ti, Satã, nas amplidões

Do céu, em que reinaste, e nas escuridões

Do inferno, em que, vencido, sonhas com


[prudência!


Deixa que eu, junto a ti sob a Árvore da Ciência,

Repouse, na hora em que, sobre a fronte, hás de ver

Seus ramos como um Templo novo se estender!





O BRINQUEDO DO POBRE



Quero dar a idéia de uma distração inocente. Há tão


poucos divertimentos que não sejam criminosos!


Quando sairdes, de manhã, com a firme intenção


de vagabundear pelas estradas, enchei os bolsos de


pequeninas invenções de um soldo e, pelas


tavernas, ao pé das árvores, presenteai os meninos


desconhecidos e pobres que fordes encontrando.


Então vereis os seus olhos crescerem, crescerem...


A princípio, não ousarão tocar no presente:


duvidarão da própria felicidade.


Depois, suas mãos agarrarão vivamente o brinquedo


e eles fugirão, como fazem os gatos, que, tendo


aprendido a desconfiar do homem,


vão comer longe de nós o bocado que lhes damos.


Numa estrada, por trás das grades de um vasto jardim,


ao fundo do qual surgia a brancura de um lindo castelo


batido de sol, via-se uma criança fresca e bela,


vestida de uma dessas roupas de campo, tão garridas.


O luxo, a ociosidade e o espetáculo habitual da


riqueza tornam esses meninos tão belos que nos parece


terem sido feitos de outra massa que não


a dos filhos da mediania ou da pobreza.


Ao lado dela, jazia sobre a relva um brinquedo


esplêndido, tão novo quanto o seu dono, envernizado,


dourado, com um traje cor de púrpura, e coberto com


plumas e vidrilhos. O pequeno, porém, não se


ocupava com o seu brinco favorito, e eis o que


ele observava:



Do outro lado da grade, na estrada, entre os cardos

e as urtigas, havia outro menino, sujo, raquítico,


tisnado, um desses garotos-párias


em quem um olho imparcial descobriria a beleza,


se o limpasse da repugnante pátina da miséria.


Através daquelas vergas simbólicas,


que separavam dois mundos, a estrada real e o


castelo, o menino pobre mostrava o seu brinquedo


ao menino rico, e este que o pequeno porcalhão


atraía com afagos, agitava e sacudia, numa espécie


de gaiola, era um rato vivo! Os pais, decerto por


economia, haviam tirado o brinquedo da própria Vida.


E as duas crianças riam uma para a outra,


fraternalmente, com dentes de uma brancura igual.




LINK: http://poetas.mortos.sites.uol.com.br/baudela.htm