domingo, 21 de outubro de 2007

À Espera dos Bárbaros

À Espera dos Bárbaros




Constantino Kaváfis



O que esperamos na ágora reunidos?


É que os bárbaros chegam hoje.


Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?


É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.


Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?



É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.



Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?



É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.


Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?


É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?


Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.


Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Viajando para Bizâncio

Viajando para Bizâncio



Yeats



Aquela não é terra para velhos. Gente
jovem, de braços dados, pássaros nas ramas
— gerações de mortais — cantando alegremente,
salmão no salto, atum no mar, brilho de escamas,
peixe, ave ou carne glorificam ao sol quente
tudo o que nasce e morre, sêmen ou semente.
Ao som da música sensual, o mundo esquece
as obras do intelecto que nunca envelhece.



Um homem velho é apenas uma ninharia,
trapos numa bengala à espera do final,
a menos que a alma aplauda, cante e ainda ria
sobre os farrapos do seu hábito mortal;
nem há escola de canto, ali, que não estude
monumentos de sua própria magnitude.
Por isso eu vim, vencendo as ondas e a distância, em busca da cidade santa de Bizâncio.



Ó sábios, junto a Deus, sob o fogo sagrado,
como se num mosaico de ouro a resplender,
vinde do fogo santo, em giro espiralado,
e vos tornai mestres-cantores do meu ser .
Rompei meu coração, que a febre faz doente
e, acorrentado a um mísero animal morrente,
já não sabe o que é; arrancai-me da idade
para o lavor sem fim da longa eternidade.



Livre da natureza não hei de assumir
conformação de coisa alguma natural,
mas a que o ourives grego soube urdir
de ouro forjado e esmalte de ouro em tramas,
para acordar do ócio o sono imperial;
ou cantarei aos nobres de Bizâncio e às damas,
pousado em ramo de ouro, como um pássa-
ro, o que passou e passará e sempre passa.

Os Dois Lados

Os Dois Lados


Murilo Mendes


Deste lado tem meu corpo
Tem o sonho
Tem a minha namorada na janela
Tem as ruas gritando de luzes e movimentos
Tem meu amor tão lento
Tem o meu anjo da guarda
Que às vezes se esquece de me guardar
Tem o mundo batendo na minha memória
Tem o caminho para o trabalho.

Do outro lado tem outras vidas vivendo a minha vida
Tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
Tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão
Tem a morte, as colunas da ordem e da desordem

domingo, 7 de outubro de 2007

Poema de sete faces - Carlos Drummond de Andrade

Poema de sete faces



Carlos Drummond de Andrade




Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.


O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.


O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,


Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.


Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.


Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Apogeu dos vagões - Florisvaldo Mattos

Apogeu dos vagões




Florisvaldo Mattos



Noturnos vagões carregados de amargura

de empilhados produtos e origens,

correi sobre horizontes dos dias!




Composição de espanto corrosivo

acerca-se de mim, vai penetrando

com violência em meus olhos. Vence-me

a carne e os nervos, minha voz,

meu desesperado sangue e cansaço, como

fantasma criminoso que, alta noite,

entrasse em minha casa fortemente

nutrido de perigos e desastres.




Negros, armados de geometria difícil,

rota economia de outonos ressentidos,

duram interiores funerários

sobre sacos sombrios e carregadores.

Barris de angústia, lento soluço,

arrastado gemido sobre trilhos,

correi, sempre correi, sombra

afogada na sombra de sangrento galope.




Confuso grito e fúria registrando

velocidade e pressentimentos,

avançai contra noites, contra os dias

noturnos vagões, consistência

de amarguras espessas e ferragens,

cruel fome de rodas gira-mundo.





Formado em direito, Florisvaldo Mattos optou pelo jornalismo, atividade que exerce até o presente. Nos anos 60, integrou em Salvador o grupo da chamada Geração Mapa, liderado pelo cineasta Glauber Rocha. Leia mais.

Quem morre? - Pablo Neruda


Quem morre?





Pablo Neruda




Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,

repetindo todos os dias o mesmo trajeto,

quem não muda de marca,

não arrisca vestir uma cor nova

e não fala com quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão seu guru.

Morre lentamente quem evita a paixão,

quem prefere o negro sobre o branco

e os pingos sobre os “is” a um redemoinho de emoções,

justamente as que resgatam os brilhos dos olhos, sorrisos dos

bocejos, corações a tropeços e sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no

trabalho,

quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,

quem não se permite pelo menos uma vez na vida,

fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música,

quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor próprio, quem não se deseja

ajudar.

Morre lentamente, quem passa os dias

queixando-se do azar ou da chuva incessante.

Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de inicia-lo,

não perguntando de um assunto que desconhece

ou não respondendo quando lhe indagam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em suaves cotas, recordando sempre que estar vivo

exige um esforço muito maior do que o simples feito de respirar.

Somente a ardente paciência fará

com que conquistemos uma plena felicidade.

História antiga - Raul de Leôni


História antiga




Raul de Leôni




No meu grande otimismo de inocente,

Eu nunca soube por que foi... um dia,

Ela me olhou indiferentemente,

Perguntei-lhe por que era... Não sabia...



Desde então, transformou-se de repente

A nossa intimidade correntia

Em saudações de simples cortesia

E a vida foi andando para frente...



Nunca mais nos falamos... vai distante...

Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante

Em que seu mudo olhar no meu repousa,



E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,

Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,

Mas que é tarde demais para dizê-la...



Raul de Leôni Ramos nasceu em Petrópolis-RJ, e faleceu na "Vila Serena", em Itaipava-RJ, (30 de outubro de 1895 - 21 de novembro de 1926). Bacharel em Direito, prosador, diplomata e político. Chegou a eleger-se deputado estadual.Foi o poeta de maior realce na última fase do simbolismo, e justamente considerado como uma das figuras mais notáveis do soneto brasileiro de todos os tempos.Leia mais.