quinta-feira, 19 de julho de 2007

Estudo para um Caos - Murilo Mendes

Estudo para um Caos


Murilo Mendes



O último anjo derramou seu cálice no ar.

Os sonhos caem na cabeça do homem,

As crianças são expelidas do ventre materno,

As estrelas se despregam do firmamento.

Uma tocha enorme pega fogo no fogo,

A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.

Os vulcões vomitam cometas em furor

E as mil pernas da Grande dançarina

Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.

Rachou-se o teto do mar em quatro partes:

Instintivamente eu me agarro no abismo.

Procurei meu rosto, não o achei.

Depois a treva foi ajuntada à própria treva.

sábado, 14 de julho de 2007

E se eu disser - Ivan Junqueira

E se eu disser



Ivan Junqueira



E se eu disser que te amo - assim, de cara,

sem mais delonga ou tímidos rodeios,

sem nem saber se a confissão te enfara

ou se te apraz o emprego de tais meios?


E se eu disser que sonho com teus seios,

teu ventre, tuas coxas, tua clara

maneira de sorrir, os lábios cheios

da luz que escorre de uma estrela rara?


E se eu disser que à noite não consigo

sequer adormecer porque me agarro

à imagem que de ti em vão persigo?


Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro

em tua ausência - essa lâmina exata

que me penetra e fere e sangra e mata.

A Reconstrução - Mário Faustino

A Reconstrução

Mário Faustino


(...)

E nos irados olhos das bacantes

Finalmente descubro quem procuro.

Não eras tu, Poesia, meras armas,

Pura consolação de minha luta.

Nem eras tu, Amor, meu camarada,

Às costas me levando, após a luta.

Procurava-me a mim, e ora me encontro

Em meu reflexo, nos olhares duros

De ébrios que me fuzilam contra o muro

E o perdão de meu canto. Sobre as nuvens

Defronte mãos escrevem numa estranha,

Antiquíssima língua estas palavras

Que afinal compreendo: toda vida

É perfeita. E pungente, e raro, e breve

É o tempo que me dão para viver-me,

Achado e precioso. Mas saúdo

Em mim a minha paz final. Metade

Infame de homem beija os pés da outra

Diva metade, enquanto esta se curva

E retribui, humilde, a reverência.

A serpente tritura a própria cauda,

O círculo de fogo se devora,

Arrasta-se o cadáver bem ferido

Para fora do palco:

este cevado

Bezerro justifica minha vida

Cantiga de Malazarte - Murillo Mendes

Cantiga de Malazarte


Murillo Mendes


Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo.

ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.

Não desprezo nada que tenha visto,

todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.

Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,

destelho as casa penduradas na terra,

tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.

Desloco as consciências.

a rua estala com meus passos,

e ando nos quatro cantos da vida.

Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido.

não posso amar ninguém porque sou o amor,

tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos

e a pedir desculpas ao mendigo.

Sou o espírito que assiste à Criação

e que bole todas as almas que encontra.

Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,

nada me fixa nos caminhos do mundo.

sábado, 7 de julho de 2007

Magnificat

Magnificat
Fernando Pessoa


Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?

Quando é que despertarei de estar acordado?

Não sei. O sol brilha alto,

Impossível de fitar.

As estrelas pestanejam frio,

Impossíveis de contar.

O coração pulsa alheio,

Impossível de escutar.

Quando é que passará este drama sem teatro,

Ou este teatro sem drama,

E recolherei a casa?

Onde? Como? Quando?

Gato que me fitas com olhos de vida, Quem tens lá no fundo?

É Esse! É esse!

Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;

E então será dia.

Sorri, dormindo, minha alma!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Para Iago - Felicidades!!!!!!!

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.



Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!



O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!



Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .


Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...






Alberto da Costa e Silva



Poema de Aniversário




De que céu, se o céu em que desfaço
as mãos em flores, que trazia, parte
hei de esperar que pare este mudar-se
de outras claras manhãs nesta tristeza?


Alto sonhamos com imóveis águas,
setembros permanentes, garças fixas,
mas os olhos e as mãos nada conquistam,
e enegrece na mesa a maçã limpa.


Carda o rude luar a lã noturna.
A vida é só, e o pranto, pequenino.
Que fazer deste rastro sem sentido
que vem ao homem e parte do menino?