domingo, 18 de novembro de 2007

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA

EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA


Dylan Thomas

Tradução: Ivan Junqueira


Em meu ofício ou arte taciturna

Exercido na noite silenciosa

Quando somente a lua se enfurece

E os amantes jazem no leito

Com todas as suas mágoas nos braços,

Trabalho junto à luz que canta

Não por glória ou por pão

Nem por pompa ou tráfico de encantos

Nos palcos de marfim

Mas pelo mínimo salário

De seu mais secreto coração



Escrevo estas páginas de espuma

Não para o homem orgulhoso

Que se afasta da lua enfurecida

Nem para os mortos de alta estirpe

Com seus salmos e rouxinóis,

Mas para os amantes, seus braços

Que enlaçam as dores dos séculos,

Que não me pagam nem me elogiam

E ignoram meu ofício ou minha arte.


Link: "http://en.wikipedia.org/wiki/Dylan_Thomas">

domingo, 4 de novembro de 2007

Elegia


Luís Antônio Cajazeiras Ramos


A fúria das chamas atacou primeiro as partes baixas
da cidade, subiu as colinas, depois devastou...

Tácito



Minha cidade não tem estátua da liberdade.
Que concreto armado juntaria tantos fragmentos
num só corpo de mulher justíssima desvendada?
Talvez de barro seja feito um totem mulato,
e um sopro de mar faça-o sempre menino,
riso moleque rasgado num resto de calção,
caído na vida, iluminando a encruzilhada.


Meu Salvador não é o Cristo Redentor: é o Elevador
— que leva para o alto, mas leva também pra baixo,
misturando inferno e paraíso de todos os lados postais.


Não há sete maravilhas, mas há Sete Portas abertas,
dando em imensa feira — capital de sete pecados.


Sobre o tabuleiro que lhe serve de andor e palco,
ergue-se deusa do Desterro e caboclo da Misericórdia.


Protegida por fortes, faróis, igrejas e ebós, é santa
a Baía de Tolos e Sonsos e quantas ilhas e mais adornos,
sereia prometida sobre o promontório recôncavo,
vestida como um V de colo decotado e enfeitado
de balangandãs e de um presépio de invasões.


Cidade armada para intermitente batalha de largo,
explosiva guerra civil de batuques carnavalescos
— e a cavalaria dos trios elétricos galopa suas ruas,
no corpo-a-corpo fraterno e fratricida de exus e zumbis.


O abraço de seus casarões exala o suor dos pelourinhos,
entorpecendo as casas-grandes transvestidas em senzalas,
onde o Barão de Preto Velho usa terno de linho e saia rendada.


Escorre pelas ladeiras cansadas seu dendê e dengo,
lambuzando de bênçãos as promessas dos joelhos morenos,
arrastados contra as escadarias de colinas consagradas.


Salvador de ouro, meu berço e sarcófago,
minha trincheira e horizonte, minha guerra e paz,
fidelidade única de minha inconstância tanta!


Quando o mar arrastar de vez seus destroços,
meus plácidos olhos velarão seu funeral,
mergulhando em busca de seu canto Janaína.

Véspera do dia dos mortos

Véspera do dia dos mortos


Luís Antônio Cajazeira Ramos


Eu não amei meu pai como devia.
Houve o dia de amá-lo e não o amei.
Ele morreu, e não nasci ainda.
Amanhã levantei sem seu amor.


Nenhum conselho amigo soa seu.
Uma vida padrasta me acompanha.
Meu caminho não quis olhar pra trás.
Tão longe de meu pai me abandonei.



Nem meu, nem de ninguém, nunca fui seu.
Não me quis dar a quem eu estranhava.
Só teu colo, mamãe, era aconchego.



Do pai, resta-me um calo de silêncios.
Ai, arranco do peito o corpo estranho.
Coração, cava o chão, busca meu pai.

Essa Mulher

Essa Mulher


Rui Espinheira Filho


A que nunca amei e me ama pensa em mim à noite
antes de dormir, e nos escombros do sono
vê o meu rosto suave, arrogante, de há muitos anos
e sente uma mão fria empunhar-lhe o coração.


É bela a que nunca amei e me ama, cada vez mais bela
com seus cabelos soltos ao sopro da memória,
com uma voz onde sonham luas que jamais iluminaram
um caminho que me levasse à que nunca amei e me ama.


É doce essa mulher que acorda e diz o meu nome
com unção. Seus olhos me fitam do longínquo
e doem em mim como dói nessa mulher que me ama
amar quem nunca a amou, disperso em seus enganos.


A que nunca amei e me ama acaricia a minha ausência
com pena de mim, que teria sido feliz, bem sabe,
se a tivesse amado; a ela, que me ama e nunca amei
e nunca hei de amar, como até hoje, amargamente

Bicarbonato de Soda (Álvaro de Campos)


Bicarbonato de Soda (Álvaro de Campos)



Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus prpósitos todos!



Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?



Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...



Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,



Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!