sábado, 15 de dezembro de 2007

LEDA E O CISNE

LEDA E O CISNE


Yeats


Súbito golpe: as grandes asas a bater

Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada

Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;

O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.



Dedos incertos de terror, como empurrar

Das coxas bambas o emplumado resplendor?

Pode o corpo, sob esse impulso de brancor,

O coração estranho não sentir pulsar?



Um tremor nos quadris engendra incontinenti

A muralha destruída, o teto, a torre a arder

E Agamêmnon, o morto.


Capturada assim,

E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim

Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,

Antes que a abandonasse o bico indiferente?



(tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ



Fernando Pessoa




I

Quando, despertos deste sono, a vida,

Soubermos o que somos, e o que foi

Essa queda até Corpo, essa descida

Até à noite que nos a Alma obstrui,




Conheceremos pois toda a escondida

Verdade do que é tudo que há ou flui?

Não: nem na Alma livre é conhecida...

Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.




Deus é o Homem de outro Deus maior:

Adam Supremo, também teve Queda;

Também, como foi nosso Criador,



Foi criado, e a Verdade lhe morreu...

De além o Abismo, Spirito Seu, Lha veda;

Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.





II



Mas antes era o Verbo, aqui perdido

Quando a Infinita Luz, já apagada,

Do Caos, chão do Ser, foi levantada

Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.


Mas se a Alma sente a sua forma errada,

Em si, que é Sombra, vê enfim luzido

O Verbo deste mundo, humano e ungido,

Rosa Perfeita, em Deus crucificada.




Então, senhores do limiar dos Céus,

Podemos ir buscar além de Deus

O Segredo do Mestre e o Bem profundo;




Mas só de aqui, mas já de nós, despertos,

No sangue atual de Cristo enfim, libertos

Do a Deus que morre a geração do Mundo.




III



Ah, mas aqui, onde irreais erramos,

Dormimos o que somos, e a verdade,

Inda que enfim em sonhos a vejamos,

Vêmo-la, porque em sonho, em falsidade.


Sombras buscando corpos, se os achamos

Como sentir a sua realidade?

Com mãos de sombra. Sombras, que tocamos?

Nosso toque é ausência e vacuidade.




Quem desta Alma fechada nos liberta?

Sem ver, ouvimos para além da sala

De ser: mas como, aqui, a porta aberta?




Calmo na falsa morte a nós exposto,

O Livro ocluso contra o peito posto,

Nosso Pai Rosaeacruz conhece e cala.

VIGÍLIA

VEGLIA



Giuseppe Ungaretti: uma tradução


Un’intera nottata

buttato vicino

a un compagno

massacrato

con la sua bocca

digrignata

volta al plenilúnio

con la congestione

delle sue mani

penetrata

nel mio silenzio

ho scritto

lettere piene d’amore



Non sono mai stato


tanto

attaccato alla vita




VIGÍLIA


Uma noite inteira

próximo

de um companheiro

massacrado

com a sua boca

a ranger à lua cheia

com o sangue hirto

das suas mãos

cravado

em meu silêncio

escrevi

cartas cheias de amor



Nunca estive assim


tão

encostado à vida



(Tradução de J.T.Parreira)

Poema dos Dons

Poema dos Dons



Jorge Luis Borges



Graças quero dar ao divino

labirinto de efeitos e causas


pela diversidade das criaturas


que formam este singular universo,


pela razão, que não deixará de sonhar


com um plano para o labirinto,


pela face de Helena e a perseverança de Ulisses,


pelo amor, que nos deixa ver os outros


como os vê a divindade,


pelo firme diamante e água solta,


pela álgebra, palácio de precisos cristais,


pelas místicas moedas de Ângelo Silésio,


por Schopenhauer,


que talvez decifrou o universo,pelo fulgor do fogo,


que nenhum ser humano pode olhar sem assombro antigo,


pelo mogno, o cedro, o sândalo,


pelo pão e o sal,


pelo mistério da rosa


que prodigaliza cor e não a vê,


por certas vésperas e dias de 1955,


pelos duros tropeiros que na planície fustigam os animais e a alva,


pela manhã em Montevidéu,


pela arte da amizade,


pelo último dia de Sócrates,


pelas palavras que no crepúsculo disseram


de uma cruz a outra cruz,


por aquele sonho do Islã que abarcou


mil e uma noites,


por aquele outro sonho do inferno,


da torre do fogo que purifica


e das esferas gloriosas,


por Swedenborg,


que conversava com os anjos nas ruas de Londres.


pelos rios secretos e imemoriais


que convergem em mim,


pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,


pela espada e a harpa dos saxônios,


pelo mar, que é um deserto resplandecente


e uma cifra de coisas que não sabemos


e um epitáfio dos vikings,


pela música verbal da Inglaterra,


pela música verbal da Alemanha, pelo ouro que reluz nos versos,


pelo inverno épico,


pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,


por Verlaine, inocente como os pássaros,


pelos prismas de cristal e o peso de bronze,


pelas raias do tigre,


pelas altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,


pela manhã no Texas,


por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral


e cujo nome, como ele houvera preferido, ignoramos,


por Sêneca e Lucano de Córdoba,


que antes do espanhol escreveram


toda a literatura espanhola,


pelo geométrico e bizarro xadrez,


pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,


pelo odor medicinal do eucalipto,


pela linguagem, que pode simular a sabedoria,


pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,


pelo hábito,


que nos repete e nos confirma como um espelho,


pela manhã, que nos proporciona a ilusão de um começo,


pela noite, sua treva e sua astronomia,


pelo valor e a felicidade dos outros,


pela pátria, sentida nos jasmins


ou numa velha espada,


por Whitmann e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,


pelo fato de que o poema é inesgotável


e se confunde com a soma das criaturas

e jamais chegará ao último verso


e varia segundo os homens,


por Francisco Haslam, que pediu perdão aos filhos


por morrer tão devagar,


pelos minutos que precedem o sono,


pelo sono e pela morte,


esses dois tesouros ocultos,


pelos íntimos dons que não enumero,


pela música, misteriosa forma do tempo.


(tradução de Paulo Mendes Campos)

Nalgum lugar em que nunca estive

Nalgum lugar em que nunca estive



E.E.Cummings


nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto


teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa


ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;


nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira


(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas


( tradução: Augusto de Campos )

A SIERGUÉI IESSIÊNIN

A SIERGUÉI IESSIÊNIN


Vladimir Maiakóvski



Você partiu,
como se diz,
para o outro mundo.
Vácuo. . .
Você sobe,
entremeado às estrelas.
Nem álcool,
nem moedas.
Sóbrio.
Vôo sem fundo.
Não, lessiênin,
não posso
fazer troça, -
Na boca
uma lasca amarga
não a mofa.
Olho –
sangue nas mãos frouxas,
você sacode
o invólucro
dos ossos.
Sim,
se você tivesse
um patrono no "Posto"(1) –

ganharia
um conteúdo
bem diverso:
todo dia
uma quota
de cem versos,
longos
e lerdos,
como Dorônin(2).
Remédio?
Para mim,
despautério:
mais cedo ainda
você estaria nessa corda.
Melhor
morrer de vodca
que de tédio !
Não revelam
as razões
desse impulso
nem o nó,
nem a navalha aberta.
Pare,
basta !
Você perdeu o senso? –
Deixar
que a cal
mortal
Ihe cubra o rosto?
Você,
com todo esse talento
para o impossível;
hábil
como poucos.
Por quê?
Para quê?
Perplexidade.
- É o vinho!
- a crítica esbraveja.
Tese:
refratário à sociedade.
Corolário:
muito vinho e cerveja.

Sim,
se você trocasse
a boêmia
pela classe;
A classe agiria em você,
e Ihe daria um norte.
E a classe
por acaso
mata a sede com xarope?
Ela sabe beber –
nada tem de abstêmia.
Talvez,
se houvesse tinta
no "Inglaterra"(3);
você
não cortaria
os pulsos.
Os plagiários felizes
pedem: bis!
Já todo
um pelotão
em auto-execução.
Para que
aumentar
o rol de suicidas?
Antes
aumentar
a produção de tinta!
Agora
para sempre
tua boca
está cerrada.
Difícil
e inútil
excogitar enigmas.
O povo,
o inventa-línguas,
perdeu
o canoro
contramestre de noitadas.
E levam
versos velhos
ao velório,
sucata
de extintas exéquias.
Rimas gastas
empalam
os despojos, -
é assim
que se honra
um poeta?
-Não
te ergueram ainda um monumento –
onde
o som do bronze
ou o grave granito? –
E já vão
empilhando
no jazigo
dedicatórias e ex-votos:
excremento.
Teu nome
escorrido no muco,
teus versos,
Sóbinov(4) os babuja,
voz quérula
sob bétulas murchas –
"Nem palavra, amigo,
nem so-o-luço".
Ah,
que eu saberia dar um fim
a esse
Leonid Loengrim!(5)
Saltaria
- escândalo estridente:
- Chega
de tremores de voz!
Assobios
nos ouvidos
dessa gente,
ao diabo
com suas mães e avós!
Para que toda
essa corja explodisse
inflando
os escuros
redingotes,
e Kógan(6)
atropelado
fugisse,
espetando
os transeuntes
nos bigodes.
Por enquanto
há escória
de sobra.
0 tempo é escasso –
mãos à obra.
Primeiro
é preciso
transformar a vida,
para cantá-la –
em seguida.
Os tempos estão duros
para o artista:
Mas,
dizei-me,
anêmicos e anões,
os grandes,
onde,
em que ocasião,
escolheram
uma estrada
batida?
General
da força humana
- Verbo –
marche!
Que o tempo
cuspa balas
para trás,
e o vento
no passado
só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo
o planeta
está imaturo.
É preciso
arrancar alegria
ao futuro.
Nesta vida
morrer não é difícil.
O difícil
é a vida e seu ofício.


(Tradução de Haroldo de Campos)

1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.


2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin (n. em 1900).


3. Hotel em que Iessiênin se suicidou.


4. O famoso cantor L.V. Sóbinov (1872-1934) foi um dos participantesda homenagem à memória de Iessiênin, que teve lugar no Teatro de Arte de Moscou, em 18 de janeiro de 1926, quando interpretou uma canção de Tchaikóvski.


5. O papel de Loengrim, da ópera deste nome, de Wagner, constituiu um dos grandes êxitos da carreira artística de Leonid Sóbinov.


6. O crítico P.S. Kógan (1872-1932), representante da crítica mais dogmática, com quem Maiakóvski manteve freqüentes polêmicas.


publicado no livro: "Maiakóvski - Poemas"traduzido por Boris Schnaiderman,

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

DA POESIA MODERNA




O poema da mente no ato de encontrar

O que há de bastar. Não teve sempre

De encontrar: a cena estava armada; repetia o que

Estava no roteiro.




Então o teatro foi mudado

Para uma outra coisa. Seu passado um suvenir.

Tem de estar vivo, aprender a fala do lugar.

Tem de encarar os homens do tempo e encontrar

As mulheres do tempo. Tem de pensar na guerra

E tem de achar o que bastará. Tem de

Construir um novo palco. Tem de estar nesse palco

E, como um ator insaciável, lentamente e

Com meditação, dizer as palavras que no ouvido,

No delicadíssimo ouvido da mente, repitam,

Exatamente, aquilo que se quer ouvir, ao som

Do qual uma audiência invisível escuta,

Não a peça, mas a si mesma, expressa

Numa emoção como de duas pessoas, como de duas

Emoções tornando-se uma. O ator é

Um metafísico no escuro, tangendo

Um instrumento, tangendo uma corda tensa que dá

Sons que assumem repentina correção, de todo

Contendo a mente, abaixo da qual não poderá descer,

Além da qual não tem vontade de subir.





Tem de

Ser o encontrar de uma satisfação, e pode ser

Um homem patinando ou uma mulher dançando, uma mulher

Penteando-se. O poema do ato da mente.
.

O Rio

O RIO





Manuel Bandeira


Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite.

Não temer as trevas da noite.

Se há estrelas no céu, refleti-las

E se os céus se pejam de nuvens,

Como o rio as nuvens são água,

Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranqüilas.



Sobre o pobre B.B.

Sobre o pobre B.B.



Bertolt Brecht



Eu, Bertolt Brecht, sou das florestas negras.
Minha mãe me trouxe para as cidades
Dentro do ventre. E o frio das florestas
Estará comigo ao me cobrir a laje.


Na cidade de asfalto estou em casa e a caráter,
Com todos os últimos sacramentos
Ministrados: jornais, tabaco, conhaque:
Desconfiado, indolente e enfim satisfeito.


Sou amável com os outros. E visto
Meu chapéu-coco, como todo o mundo.
Digo: são bichos de cheiro esquisito
E digo: e daí? Também sou, no fundo.


Às vezes, nas cadeiras de balanço,
Coloco algumas moças, de manhã,
E digo: em mim vocês têm, eu garanto,
Alguém em quem não podem confiar.


À tarde me reúno com colegas.
Tratamo-nos de “gentleman”, então.
Eles dizem, com os pés à minha mesa:
As coisas vão melhorar. E não pergunto: quando.


Na madrugada cinza, abetos mijam
E piam os pássaros, que são seus vermes.
Na cidade, meu copo se esvazia,
Largo o charuto e durmo um sono leve.


Assentamo-nos, uma geração leviana,
Em prédios que quiséramos indestrutíveis
(assim construímos os arranha-céus da ilha de Manhattan
E as finas antenas sobre o Atlântico a nos divertirem).


Destas cidades ficará quem as atravessou, o vento!
A casa faz feliz quem nela come: quem a esvazia.
Sabemos sermos efêmeros
E que depois de nós o que virá será sem valia.


Nos terremotos vindouros, que não seja meu fado
Deixar por amargura o meu Virginia se apagar,
Eu, Bertolt Brecht, largado nas cidades de asfalto,
Oriundo das florestas negras, no ventre da mãe, tempos atrás.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Dispersão

Dispersão




Mário de Sá-Carneiro


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.


Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...


Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.


(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:


Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família.)


O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.


A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.


Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.


Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projecto.


Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.


Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.


Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo


A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.


(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)


E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.


Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.


Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...


Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas pra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...


Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...


Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.


Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.


Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço...


... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ...
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ...

sábado, 1 de dezembro de 2007

SALA DAS MULHERES DE PARTO

Para Iago que acaba de encerrar seu estágio em Ginecologia e Obstetrícia


SALA DAS MULHERES DE PARTO




Gottfried Benn



Mulheres mais pobres de Berlim
-em quarto e meio treze filhos,
reclusas, putas, marginais-
gemem aqui, ventre a torcer-se.
Em parte alguma se uiva assim.
Em parte alguma à dor, desdita,
mais indiferença pode ver-se,
aqui há sempre algo que grita.


'Mulher, avie-se! Tá a perceber?
Não está aqui para o prazer.
Nem deixe as coisas arrastar-se
se nesse parto vai borrar-se!
Não está aqui para o descanso.
Não vem por si. Dê-lhe um avanço!'
Ei-lo: pequeno e arroxeado.
De fezes e mijo vem untado.


De onze camas, sangue e choro,
sai gemedeira em saudação.
Só de dois olhos rompe um coro
de aleluias que ao céu vão.


Tudo esta peça de carne há-de
conhecer: dor, felicidade.
E se o estertor um dia exala
inda há mais doze nesta sala.


(trad.Vasco Graça Moura)

http://www.secrel.com.br/jpoesia/ag15benn.htm

Homem e mulher visitam o pavilhão dos cancerosos

Homem e mulher visitam o pavilhão dos cancerosos



Gottfried Benn


Homem:

aqui, estas fileiras são dos ventres cancerosos

e esta fileira dos seios cancerosos.

Leito por leito fétido. As enfermeiras se revezam de hora em hora.

Venha, pode levantar esta coberta.

Olhe, este amontoado de gordura e secreção pútrida,

já foi antes tudo para um homem

e significava também sussurro e pátria.

Venha, olhe para esta cicatriz no peito.

Está sentindo o relevo macio e branco?

Pode tocá-lo, a carne é macia e não dói.

Aqui, esta sangra como trinta corpos.

Ninguém tem tanto sangue assim.

Aqui, desta tiveram que tirar primeiro

uma criança de dentro do ventre carcinomatoso.

Deixam-nas dormirem. Dia e noite. -Às novas

se diz: aqui se dorme até ficar sã. -Só aos domingos

deixam-nas um pouco conscientes, para a visita.

Alimento é pouco ingerido. As costas

estão em chagas. Você vê as moscas. De vez em quando

a enfermeira as banha, como se tivesse lavando bancos.

Aqui, por cada leito o túmulo incha

Carne nivela-se com a terra. A energia se esvai.

Sangue escorre incessante. A cova chama.