terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Poema dos Dons

Poema dos Dons



Jorge Luis Borges



Graças quero dar ao divino

labirinto de efeitos e causas


pela diversidade das criaturas


que formam este singular universo,


pela razão, que não deixará de sonhar


com um plano para o labirinto,


pela face de Helena e a perseverança de Ulisses,


pelo amor, que nos deixa ver os outros


como os vê a divindade,


pelo firme diamante e água solta,


pela álgebra, palácio de precisos cristais,


pelas místicas moedas de Ângelo Silésio,


por Schopenhauer,


que talvez decifrou o universo,pelo fulgor do fogo,


que nenhum ser humano pode olhar sem assombro antigo,


pelo mogno, o cedro, o sândalo,


pelo pão e o sal,


pelo mistério da rosa


que prodigaliza cor e não a vê,


por certas vésperas e dias de 1955,


pelos duros tropeiros que na planície fustigam os animais e a alva,


pela manhã em Montevidéu,


pela arte da amizade,


pelo último dia de Sócrates,


pelas palavras que no crepúsculo disseram


de uma cruz a outra cruz,


por aquele sonho do Islã que abarcou


mil e uma noites,


por aquele outro sonho do inferno,


da torre do fogo que purifica


e das esferas gloriosas,


por Swedenborg,


que conversava com os anjos nas ruas de Londres.


pelos rios secretos e imemoriais


que convergem em mim,


pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,


pela espada e a harpa dos saxônios,


pelo mar, que é um deserto resplandecente


e uma cifra de coisas que não sabemos


e um epitáfio dos vikings,


pela música verbal da Inglaterra,


pela música verbal da Alemanha, pelo ouro que reluz nos versos,


pelo inverno épico,


pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,


por Verlaine, inocente como os pássaros,


pelos prismas de cristal e o peso de bronze,


pelas raias do tigre,


pelas altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,


pela manhã no Texas,


por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral


e cujo nome, como ele houvera preferido, ignoramos,


por Sêneca e Lucano de Córdoba,


que antes do espanhol escreveram


toda a literatura espanhola,


pelo geométrico e bizarro xadrez,


pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,


pelo odor medicinal do eucalipto,


pela linguagem, que pode simular a sabedoria,


pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,


pelo hábito,


que nos repete e nos confirma como um espelho,


pela manhã, que nos proporciona a ilusão de um começo,


pela noite, sua treva e sua astronomia,


pelo valor e a felicidade dos outros,


pela pátria, sentida nos jasmins


ou numa velha espada,


por Whitmann e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,


pelo fato de que o poema é inesgotável


e se confunde com a soma das criaturas

e jamais chegará ao último verso


e varia segundo os homens,


por Francisco Haslam, que pediu perdão aos filhos


por morrer tão devagar,


pelos minutos que precedem o sono,


pelo sono e pela morte,


esses dois tesouros ocultos,


pelos íntimos dons que não enumero,


pela música, misteriosa forma do tempo.


(tradução de Paulo Mendes Campos)

Nenhum comentário: