quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Desejo - Victor Hugo


Desejo



Victor Hugo


"Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconseqüentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.

Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar".

Victor Hugo (26 de fevereiro de 1802 em Besançon - 22 de maio de 1885, Paris) foi um escritor e poeta francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras. Leia mais.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Postada por Michelle irmã de Milena (ambas, doce de ambrosia do bom como das minhas tias de Caetité, filhas de Ana e Alfredo - FELICIDADES


Escravo em Papelópolis

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


"Ó burocratas!
Que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio...
É ainda o sentimento
Da vida que perdi sendo um dos vossos."




Busque Amor novas artes, novo engenho

CAMÕES


Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.



LINKS:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Ao Divino Assassino - Bruno Tolentino

"Ao Divino Assassino"




(Uma Litania ante o Sagrado
Coração, concebida em Paray-le-Maunial,
à época do acidente fatal
de Anecy Rocha)


Bruno Tolentino


Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível
é sempre assim? Não tens um refratário
à hora do massacre — um mais sensível


que atrasasse o relógio, o calendário?
Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino dói no campanário.


Começa a amanhecer e uma vez mais
rebelo-me, mas sei que a minha vida
não tem como ou porque voltar atrás.


Aceito que a mais dura despedida
é bem mais que metáfora do nada
a que se inclina no chão; que uma ferida


e a papoula sangrenta da alvorada
pertencem ao mundo sobrenatural
tanto quanto uma lágrima enxugada


à beira de um caixão. Mas afinal,
Senhor, amas ou não a humanidade?
Não fui ao escandaloso funeral


e imaginá-la em Tua eternidade
dói demais! Vou passar mais este teste,
sim, mas protesto contra a insanidade


com que arrancas a muque o que nos deste!
Tu sabes que a soberba da família
era maior que a dela e eu tinha a peste —


pai e mãe apartavam-me da filha
e o irmãozão nem... E hoje, coitados,
como hão de estar? Aqui é a maravilha,


as genuflexões.... Os potentados
e os humildes, a nata da esperança,
todos chegam por cá meio esfolados,


sangrando como a luz. Não só da França,
toda a Europa rasteja até aqui
esfolando os joelhos, não se cansa


de ensangüentar-se até chegar a Ti,
e ao menos a um pixote do Além Tejo
restituíste a vista: eu quando o vi


solucei — mas que o cego e o paraplégico
saiam aos pinotes, que o Teu coração
se escancare e esparrame um privilégio


aqui e outro acolá na multidão,
só me faz perguntar: E ela? E ela...?
Não consigo entender que a um aleijão


concedas tanto enquanto a uma camélia
Tu deixas despencar.... Porque, Senhor?
Olho tudo do vão de uma janela,


mas vejo a porta de um elevador
escancarar-se sobre um outro vão,
um vão sem chão... E a seja lá quem for


aqui absurdamente dás a mão!
Me pões trêmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor — mas consolado não.


A mesma mão que fez gato e sapato
da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,


Dominus dixit... Mas quem merecia
mais do que uma açucena matinal
um manso desfolhar-se ao fim do dia,


quem mais do que uma flor, Senhor? Igual
nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos,
tinha direito a um fim mais natural,


à morte numa cama, em casa ao menos...
Mas não — tinha que ser total o escândalo!
Por que, se nem nos circos mais extremos


Teus mártires andaram despencando
sobre os leões, se nem o lixo cai
de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!


Não vim denunciar o Filho ao Pai
ou o Pai ao Filho, não vim dar razão
aos que recusam e usam cada ai


contra a humildade; vim porque a Paixão
me chamou pelo nome a a alma obedece
e aceita suar sangue — como não?


Mas não sei mais unir o rogo à prece
do que a elegia ao hino de louvor,
não seu amar-Te assim... Caso soubesse


teria que ficar aqui, Senhor,
aqui, arrebentando-me os joelhos,
esfolando-me todo ante um amor


que vai tornando sempre mais vermelhos,
mais duros os degraus do Teu altar.
Tu, que tudo consertas, dos artelhos


que desentortas e repões a andar
até às pupilas mortas de um garoto,
do cachoupinho que me fez chorar;


Tu, que a este lhe dás a flor no broto
e àquele o lírio pútrido do pus;
Tu, que passas por um de quatro e a um outro


pegas no colo e entregas a Jesus;
Tu que fazes jorrar da rocha fria;
Tu que metaforizas Tua luz


ao ponto de fazer de uma agonia
um puro horror ou a morna mansuetude —
que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?


Quando eu agonizar, boiar no açude
das lágrimas sem fundo... Quando a fonte
cessar de soluçar e uma altitude


imerecida me enxugar a fronte...
Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras
que a mim me embale a barca de Caronte,


como o fazia a velha Cantareira,
o azul da travessia... A Irrecorrível
arrasta a cada um de uma maneira


e a quem quer que se abeire ao invisível
recordas a promessa: aquele a escuta
e este a recusa porque a dor é horrível,


mas, se a todos a última permuta
terá sempre o sabor da anulação,
o travo lacrimoso da cicuta,


a ela Tu negaste o próprio chão,
deixaste-a abrir a porta sem querer!
Nunca falou na morte, e com razão,


intuía, quem sabe, o que ia ver...
Sentença Tua? Em nome da promessa
não há negar Teu duro amanhecer —


mas quando arrancas mais uma cabeça
como saber que és Tu, que não mentia
O que ressuscitou? Talvez na pressa,


no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,


metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão


de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta... Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,


se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Ariel por Calibã...?
Alvorece, a manhã beata velha


enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso, ela morreu... Hoje, amanhã,


enquanto Te aprouver e até que dê
a palma ao prego e o último verso à traça,
vai doer — mas Amém! Não há porque


amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não... Tudo dói, menos a graça,


mata, Senhor, que a morte não faz mal!


Do livro: Anulação e Outros Reparos, 1963



De Bruno:


Por que escrevo
(excerto)



Digamos que escrevo para tentar separar
o mundo-como-tal do mundo-como-idéia.
Claro? Bem, talvez tenha outras motivações
menos conscientes, mas não tenho melhor
justificativa para exercer um ofício tão
perigoso... Imaginar-se autor parece-me
tamanha petulância que desde que me
entendo tento fingir que sirvo para alguma
coisa!

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Isto posto, que se atente bem: poeta não é
maître à penser e jamais pretendi que
escavo e escrevo para tentar configurar
mais uma teoria, antes o faço de modo a
testemunhar de uma resistência a tentações
desse tipo, de que tampouco fui poupado.
Mas não complico mais a coisa: confesso
ao leitor que não sei porque inventei de
ser escritor. A não ser que o que ficou
dito acima faça algum sentido...