terça-feira, 14 de agosto de 2007

Ao Divino Assassino - Bruno Tolentino

"Ao Divino Assassino"




(Uma Litania ante o Sagrado
Coração, concebida em Paray-le-Maunial,
à época do acidente fatal
de Anecy Rocha)


Bruno Tolentino


Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível
é sempre assim? Não tens um refratário
à hora do massacre — um mais sensível


que atrasasse o relógio, o calendário?
Ao que parece a todos tanto faz
por quem o sino dói no campanário.


Começa a amanhecer e uma vez mais
rebelo-me, mas sei que a minha vida
não tem como ou porque voltar atrás.


Aceito que a mais dura despedida
é bem mais que metáfora do nada
a que se inclina no chão; que uma ferida


e a papoula sangrenta da alvorada
pertencem ao mundo sobrenatural
tanto quanto uma lágrima enxugada


à beira de um caixão. Mas afinal,
Senhor, amas ou não a humanidade?
Não fui ao escandaloso funeral


e imaginá-la em Tua eternidade
dói demais! Vou passar mais este teste,
sim, mas protesto contra a insanidade


com que arrancas a muque o que nos deste!
Tu sabes que a soberba da família
era maior que a dela e eu tinha a peste —


pai e mãe apartavam-me da filha
e o irmãozão nem... E hoje, coitados,
como hão de estar? Aqui é a maravilha,


as genuflexões.... Os potentados
e os humildes, a nata da esperança,
todos chegam por cá meio esfolados,


sangrando como a luz. Não só da França,
toda a Europa rasteja até aqui
esfolando os joelhos, não se cansa


de ensangüentar-se até chegar a Ti,
e ao menos a um pixote do Além Tejo
restituíste a vista: eu quando o vi


solucei — mas que o cego e o paraplégico
saiam aos pinotes, que o Teu coração
se escancare e esparrame um privilégio


aqui e outro acolá na multidão,
só me faz perguntar: E ela? E ela...?
Não consigo entender que a um aleijão


concedas tanto enquanto a uma camélia
Tu deixas despencar.... Porque, Senhor?
Olho tudo do vão de uma janela,


mas vejo a porta de um elevador
escancarar-se sobre um outro vão,
um vão sem chão... E a seja lá quem for


aqui absurdamente dás a mão!
Me pões trêmulo, gago, estupefato,
pasmo, Senhor — mas consolado não.


A mesma mão que fez gato e sapato
da minha doce Musa, cura e guia,
cancela as entrelinhas do contrato,


Dominus dixit... Mas quem merecia
mais do que uma açucena matinal
um manso desfolhar-se ao fim do dia,


quem mais do que uma flor, Senhor? Igual
nunca se viu nem mesmo entre os crisântemos,
tinha direito a um fim mais natural,


à morte numa cama, em casa ao menos...
Mas não — tinha que ser total o escândalo!
Por que, se nem nos circos mais extremos


Teus mártires andaram despencando
sobre os leões, se nem o lixo cai
de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!


Não vim denunciar o Filho ao Pai
ou o Pai ao Filho, não vim dar razão
aos que recusam e usam cada ai


contra a humildade; vim porque a Paixão
me chamou pelo nome a a alma obedece
e aceita suar sangue — como não?


Mas não sei mais unir o rogo à prece
do que a elegia ao hino de louvor,
não seu amar-Te assim... Caso soubesse


teria que ficar aqui, Senhor,
aqui, arrebentando-me os joelhos,
esfolando-me todo ante um amor


que vai tornando sempre mais vermelhos,
mais duros os degraus do Teu altar.
Tu, que tudo consertas, dos artelhos


que desentortas e repões a andar
até às pupilas mortas de um garoto,
do cachoupinho que me fez chorar;


Tu, que a este lhe dás a flor no broto
e àquele o lírio pútrido do pus;
Tu, que passas por um de quatro e a um outro


pegas no colo e entregas a Jesus;
Tu que fazes jorrar da rocha fria;
Tu que metaforizas Tua luz


ao ponto de fazer de uma agonia
um puro horror ou a morna mansuetude —
que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?


Quando eu agonizar, boiar no açude
das lágrimas sem fundo... Quando a fonte
cessar de soluçar e uma altitude


imerecida me enxugar a fronte...
Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras
que a mim me embale a barca de Caronte,


como o fazia a velha Cantareira,
o azul da travessia... A Irrecorrível
arrasta a cada um de uma maneira


e a quem quer que se abeire ao invisível
recordas a promessa: aquele a escuta
e este a recusa porque a dor é horrível,


mas, se a todos a última permuta
terá sempre o sabor da anulação,
o travo lacrimoso da cicuta,


a ela Tu negaste o próprio chão,
deixaste-a abrir a porta sem querer!
Nunca falou na morte, e com razão,


intuía, quem sabe, o que ia ver...
Sentença Tua? Em nome da promessa
não há negar Teu duro amanhecer —


mas quando arrancas mais uma cabeça
como saber que és Tu, que não mentia
O que ressuscitou? Talvez na pressa,


no pânico de Pedro, eu negue um dia
e trate de escapar, mas hoje não;
hoje sofro com fé e, sem poesia,


metrifico uma dor sem solução,
mas não vim negar nada! Faz efeito
essa dor: faz sangrar, mas faz questão


de defender-me como um parapeito
contra a queda e a revolta... Um Botticelli
despedaçou-se todo, mas que jeito,


se por Lear enforcam uma Cordélia
e encarceram a Ariel por Calibã...?
Alvorece, a manhã beata velha


enfia agulhas no Teu céu de lã,
antenas às Tuas cenas de TV,
e eu penso, ela morreu... Hoje, amanhã,


enquanto Te aprouver e até que dê
a palma ao prego e o último verso à traça,
vai doer — mas Amém! Não há porque


amar a morte, mas que venha a Taça,
aceito suar sangue até o final,
como não... Tudo dói, menos a graça,


mata, Senhor, que a morte não faz mal!


Do livro: Anulação e Outros Reparos, 1963



De Bruno:


Por que escrevo
(excerto)



Digamos que escrevo para tentar separar
o mundo-como-tal do mundo-como-idéia.
Claro? Bem, talvez tenha outras motivações
menos conscientes, mas não tenho melhor
justificativa para exercer um ofício tão
perigoso... Imaginar-se autor parece-me
tamanha petulância que desde que me
entendo tento fingir que sirvo para alguma
coisa!

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Isto posto, que se atente bem: poeta não é
maître à penser e jamais pretendi que
escavo e escrevo para tentar configurar
mais uma teoria, antes o faço de modo a
testemunhar de uma resistência a tentações
desse tipo, de que tampouco fui poupado.
Mas não complico mais a coisa: confesso
ao leitor que não sei porque inventei de
ser escritor. A não ser que o que ficou
dito acima faça algum sentido...

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