segunda-feira, 18 de junho de 2007

Baudelaire


AS LITANIAS DE SATÃ


Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto,

Deus que a sorte traiu e privou do seu culto,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Ó Príncipe do exílio a quem alguém fez mal,

E que, vencido, sempre te ergues mais brutal,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas,

Charlatão familiar das humanas insânias,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que, mesmo ao leproso, ao paria infame, ao réu

Ensinas pelo amor às delícias do Céu,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que da morte, tua velha e forte amante,

Engendraste a Esperança, - a louca fascinante!

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que dás ao proscrito esse alto e calmo olhar

Que faz ao pé da forca o povo desvairar,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que sabes onde é que em terras invejosas

O Deus ciumento esconde as pedras preciosas.

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu cuja larga mão oculta os precipícios,

Ao sonâmbulo a errar na orla dos edifícios,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que, magicamente, abrandas como mel

Os velhos ossos do ébrio moído num tropel,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu, que ao homem que é fraco e sofre deste o alvitre

De poder misturar ao enxofre o salitre,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que pões tua marca, ó cúmplice sutil,

Sobre a fronte do Creso implacável e vil,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Tu que, abrindo a alma e o olhar das raparigas



a ambos



Dás o culto da chaga e o amor pelos molambos,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!



Do exilado bordão, lanterna do inventor,

Confessor do enforcado e do conspirador,

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria !


Pai adotivo que és dos que, furioso, o Mestre

O deus Padre, expulsou do paraíso terrestre

Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria !





ORAÇÃO



Glória e louvor a ti, Satã, nas amplidões

Do céu, em que reinaste, e nas escuridões

Do inferno, em que, vencido, sonhas com


[prudência!


Deixa que eu, junto a ti sob a Árvore da Ciência,

Repouse, na hora em que, sobre a fronte, hás de ver

Seus ramos como um Templo novo se estender!





O BRINQUEDO DO POBRE



Quero dar a idéia de uma distração inocente. Há tão


poucos divertimentos que não sejam criminosos!


Quando sairdes, de manhã, com a firme intenção


de vagabundear pelas estradas, enchei os bolsos de


pequeninas invenções de um soldo e, pelas


tavernas, ao pé das árvores, presenteai os meninos


desconhecidos e pobres que fordes encontrando.


Então vereis os seus olhos crescerem, crescerem...


A princípio, não ousarão tocar no presente:


duvidarão da própria felicidade.


Depois, suas mãos agarrarão vivamente o brinquedo


e eles fugirão, como fazem os gatos, que, tendo


aprendido a desconfiar do homem,


vão comer longe de nós o bocado que lhes damos.


Numa estrada, por trás das grades de um vasto jardim,


ao fundo do qual surgia a brancura de um lindo castelo


batido de sol, via-se uma criança fresca e bela,


vestida de uma dessas roupas de campo, tão garridas.


O luxo, a ociosidade e o espetáculo habitual da


riqueza tornam esses meninos tão belos que nos parece


terem sido feitos de outra massa que não


a dos filhos da mediania ou da pobreza.


Ao lado dela, jazia sobre a relva um brinquedo


esplêndido, tão novo quanto o seu dono, envernizado,


dourado, com um traje cor de púrpura, e coberto com


plumas e vidrilhos. O pequeno, porém, não se


ocupava com o seu brinco favorito, e eis o que


ele observava:



Do outro lado da grade, na estrada, entre os cardos

e as urtigas, havia outro menino, sujo, raquítico,


tisnado, um desses garotos-párias


em quem um olho imparcial descobriria a beleza,


se o limpasse da repugnante pátina da miséria.


Através daquelas vergas simbólicas,


que separavam dois mundos, a estrada real e o


castelo, o menino pobre mostrava o seu brinquedo


ao menino rico, e este que o pequeno porcalhão


atraía com afagos, agitava e sacudia, numa espécie


de gaiola, era um rato vivo! Os pais, decerto por


economia, haviam tirado o brinquedo da própria Vida.


E as duas crianças riam uma para a outra,


fraternalmente, com dentes de uma brancura igual.




LINK: http://poetas.mortos.sites.uol.com.br/baudela.htm

Nenhum comentário: